Folha de S. Paulo: Documentário ‘Quantos Dias, Quantas Noites’ discute tabus da velhice e da morte

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A escritora Ana Michelle Soares em cena do documentário 'Quantos Dias, Quantas Noites", de Cacau Rhoden - Arquivo pessoal

Com a chegada a cinemas selecionados nesta quinta (12), o documentário “Quantos Dias, Quantas noites” teve em janeiro deste ano uma pré-estreia inusitada.

O filme ainda estava em processo de finalização quando foi exibido no auditório do hospital Nove de Julho, em São Paulo, para atender ao desejo de uma das participantes.

Assistir ao documentário fazia parte de uma “bucket list” criada pela jornalista, escritora e ativista dos cuidados paliativos Ana Michelle Soares, a AnaMi, que enfrentava um câncer metastático de mama. Ela saiu da UTI especialmente para isso. Morreu 15 dias depois, aos 40 anos.

Dirigido por Cacau Rhoden —de “Nunca Me Sonharam” e “Tarja Branca”—, produzido pela Maria Farinha Filmes e idealizado por Marta Pipponzi, o filme trata de envelhecimento e finitude, um tema ainda tabu na sociedade.

Reúne depoimentos de pessoas como a filósofa e escritora Sueli Carneiro, a atriz e coreógrafa Mona Rikumbi, o médico e gerontólogo Alexandre Kalache, a médica e escritora Ana Claudia Quintana Arantes e o enfermeiro e líder comunitário Alexandre Silva.

Por meio de diferentes histórias e contextos de vida, há uma reflexão sobre a nossa relação com o tempo. “A melhor idade é aquela em que você está bem com ela. Pode ser aos 18, aos 50, aos 75 anos”, diz Kalache.

Ana Cláudia define o tempo como um milagre e chama a atenção para o fato de que a sociedade brasileira é incapaz de prestar atenção nele e de respeitar o envelhecimento. “A sociedade de consumo tende a nos fazer acreditar que aquilo que é velho não funciona, não é bom, não é necessário para viver bem.”

“Vivemos em um país hedonista, em que o jovem é o padrão. Querer fazer com que isso dure, é uma receita certa para se frustrar porque é impossível”, acrescenta Kalache.

Para Sueli Carneiro, “surrupiar o tempo” é a maior perversidade do capitalismo neoliberal. “Nos rouba vida. O planeta não suporta mais essa predação.”

O envelhecimento e o fim de vida nas favelas, onde o poder público costuma não chegar, é ainda mais desafiador, lembram alguns dos entrevistados no filme.

“São cenas de guerra, de abandono, muita gente vivendo e morrendo sozinha. O Samu não sobe viela”, conta o enfermeiro Alexandre Silva que, junto com um grupo de voluntárias na Rocinha, criou o projeto de comunidades compassivas, que leva cuidados paliativos aos moradores de favelas.

Maria do Carmo Silva, voluntária na Rocinha, só tirou a certidão de nascimento aos 20 anos, quando chegou ao Rio. “Eu não sei se tenho essa idade. Mas eu tinha que ter um registro para existir. Quantos dias eu já passei? Quantas noites”, questiona.

Ainda neste contexto, a escritora Sueli Carneiro lembra que a longevidade no país não é um direito de todos. “Jovens negros são seres considerados descartáveis nessa sociedade. O desafio para eles não é o terror do envelhecimento, é [conseguir] chegar a uma vida adulta. Não tem nenhuma guerra em curso no mundo que mate tanto como o Brasil mata seus jovens negros”, diz.

Os depoimentos também trazem fios de esperança. Em uma creche na Rocinha, dona Dalva cuida de um grupo de crianças para que as jovens mães possam trabalhar. “Eu adoro. Se me tirarem isso aqui, eu morro.”

Tom Almeida, fundador do Movimento Infinito, lembra que as marcas que deixamos são imortais.

“Se eu puder inspirar e impactar a minha comunidade, isso já faz parte do meu legado, e é isso que não morre, isso segue vivo.”

Aos 50 anos e lidando com uma doença neurológica que a deixou sem movimento nas pernas desde 2007, Mona Rikumbi diz que tem gostado de envelhecer de acordo com os preceitos das tradições africanas. “Esse momento é de poder, de transmissão de conhecimento para as gerações mais jovens. Isso é ambicionado pela gente. Isso é gostar de viver.”

Um dos momentos mais tocantes do documentário são as falas de AnaMi. Ela nos lembra que a finitude é crônica para todos. “A hora que acabar, vou ter feito tudo, em paz, pensando que eu fui a melhor humana que eu pude ser. Tenho mais medo de não ter vivido do que de morrer. Se eu morrer hoje, está tudo certo, fez muito sentido estar aqui.”

O filme estará em exibição no Itaú Cinemas de São Paulo e Brasília, o Estação NET do Rio de Janeiro, o Una Belas Artes de Belo Horizonte e o Cine Glauber Rocha de Salvador.

O longa terá ações de democratização do acesso, com sessões gratuitas entre 12 e 18 de outubro em todos os cinemas —os ingressos ficarão disponíveis uma hora antes, na bilheteria, com salas sujeitas à lotação. Ele estará disponível também, durante todo o dia 12 de outubro, na plataforma de streaming do Itaú Cultural Play.

Fonte: Folha de S. Paulo

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