Falar sobre a morte pode parecer incômodo, mas é também uma forma de dar mais sentido à vida. Foi com essa proposta que o Hospital São Julião promoveu em Campo Grande, a palestra “A morte é um dia que vale a pena viver”, conduzida pela médica geriatra e paliativista Ana Claudia Quintana Arantes.
O encontro, realizado no Centro de Convenções Rubens Gil de Camillo, reuniu público diverso e emocionou com reflexões profundas sobre o sofrimento humano, os cuidados paliativos e a urgência de se pensar na finitude com mais empatia, preparo e verdade.
Ao compartilhar o processo de criação de seus livros, a médica revelou que escrever foi uma forma de organizar emocionalmente a intensidade do cotidiano ao lado de pacientes em fase terminal. “O livro para mim foi uma experiência muito íntima. Eu tinha a escrita como um caminho de elaboração de toda a intensidade que eu vivo no dia a dia com o cuidado. Sempre fui um vulcão em erupção, e a organização dessa erupção veio com a escrita”, contou.
O conhecimento técnico, aliado à escuta das histórias reais que vivencia com seus pacientes, formou o alicerce para sua atuação e também para sua literatura. “Toda estrutura técnica que eu busquei vem acompanhada da experiência dos grandes mestres: os pacientes que a gente cuida.”
A médica também fez duras, mas necessárias críticas ao modelo atual de formação médica no Brasil. Ela defende que o sofrimento, e não apenas a doença, deve ser abordado desde a graduação. “O que vai tirar o sono dos médicos não é a dose do antibiótico. É o que não ensinaram para ele lidar. Situações humanas foram colocadas como menores, mas são as maiores de verdade”, alerta. A médica ainda reforçou para a desconexão entre os profissionais e a dimensão humana do sofrimento: “A medicina é um adoecimento. Cognitivo, emocional, comportamental. Quando a gente encontra o sofrimento, acredita que curar a doença basta. E não basta.”
A ausência de políticas públicas efetivas, segundo Ana Claudia, compromete a dignidade no fim da vida e sobrecarrega emocionalmente os profissionais. “O coordenador de cuidados paliativos é, muitas vezes, o que ganha menos no hospital. E isso é insano. Essa pessoa carrega um compromisso humano imenso, sem apoio do gestor.”
Um dos trechos mais impactantes da palestra surgiu quando Ana Claudia propôs uma reflexão prática sobre como encarar os problemas do dia a dia sob a ótica da finitude. “A morte é um fato. A gente pode viver bem por muito tempo, mas vai morrer. Faça a lista dos seus cinco maiores problemas. Olhe para ela como se você fosse morrer na quarta-feira que vem. Aí você vai descobrir o que realmente importa.”
Segundo a médica, é essa consciência da finitude que deveria guiar nossa vida. “Você não precisa de curso de gestão de tempo, nem de antidepressivo, nem de beber até cair. Precisa da prioridade que só a morte te mostra. Ela é real. E por isso é a sua melhor amiga.”
Como abordar a morte com as crianças? – Outro destaque foi a abordagem da morte com o público infantil. Para Ana Claudia, o problema não está nas crianças, mas na forma como os adultos lidam com a perda. “Quando a gente é criança, a gente é curiosa. Quer saber o que está acontecendo. Quem amedronta é o adulto. E esse adulto, muitas vezes, cresceu ouvindo que não se pode falar da morte.”
Ela compartilhou o impacto negativo da cultura do silêncio sobre a morte. “Muitas crianças crescem acreditando que ninguém se importa quando alguém morre. E é isso que carregam pela vida. O medo de morrer nasce da sensação de que ninguém se importa.”
A profissional compartilhou o que considera mais essencial para quem está vivendo o luto ou acompanhando alguém no fim da vida: a coragem de perguntar e ouvir. “Cada vínculo mora dentro de você num lugar diferente. Não tem script. Mas não perca a chance de perguntar: por que essa pessoa é importante para você?”. Essa pergunta, por mais simples que pareça, exige coragem. “Pode parecer indelicada, mas a resposta está em você. A honestidade é o caminho”, concluiu.
Fonte: A Crítica