Vida Simples: Quero voltar pra casa

(FOTO: UNSPLASH) MORRER EM CASA É VIVER OS ÚLTIMOS MOMENTOS CERCADO DE AMOR, PRESENÇA E ACOLHIMENTO

Este é um pedido frequente dos pacientes que padecem com sofrimentos dentro do hospital. Entre pessoas idosas, ele pode até acontecer quando já estão em casa, mas não reconhecem o espaço como um lar. E nem sempre este reconhecimento vem de uma casa com endereço. Às vezes, é de um tempo em que o corpo era leve, a alma era vista, a vida fazia sentido. É um pedido por um abrigo onde a existência seja acolhida com ternura, assim como a finitude.

Voltar pra casa é desejar viver até morrer onde se ama e é amado. Onde o cobertor tem história, o cheiro do quarto traz memórias e a mesinha de cabeceira guarda nossos objetos sagrados preferidos. É desejar que a morte não seja asséptica, solitária, protocolar – mas viva, íntima, verdadeira.

Morrer em casa não é morrer abandonado. É, muitas vezes, morrer cercado de sentido. Mas isso exige coragem. A coragem de enfrentar o medo: o da família, o do paciente, o da equipe. Medo de não saber cuidar, medo da dor, medo do fim. E também exige preparo: saber que o corpo que morre precisa de menos do que imaginamos – menos comida, menos esforço, menos urgência. Necessita de cuidados de quem sabe a importância que isso tem na vida humana. E mais presença, mais silêncio, mais escuta.

A coragem de viver até o fim

No fim da vida, começamos a dissolver a nossa forma de existir neste mundo. É como se a natureza nos chamasse de volta, parte por parte. Primeiro, a terra: o corpo pesa como se carregasse o mundo. Depois, a água: tudo resseca, os olhos, a boca, a pele. Em seguida, o fogo: o brilho se apaga, mas antes uma última chama pode reacender a lucidez. Por fim, o ar: o sopro sagrado, que um dia chegou em silêncio, agora parte do mesmo jeito.

O corpo devolve o que recebeu, e o que resta é o amor que permanece. Para quem sente medo de cuidar de alguém que está morrendo, é importante que seja dito: você não precisa saber tudo, nem dar conta de tudo. O cuidado não exige perfeição, exige presença. Um copo d’água, uma mão que afaga, um olhar que diz “estou aqui” valem mais do que mil procedimentos. Pode ter certeza.

E quando o último suspiro vem, o instante seguinte é sagrado. Não precisa ter pressa. Basta ficar. Dez minutos de silêncio podem ser um gesto de amor maior do que todas as palavras. Depois, virão os telefonemas, os papéis, os rituais.

Mas, antes, é possível honrar a partida com presença. Alguém se foi, alguém ficou. E o amor não muda de lugar. Só amanhece agora no mesmo ninho: no coração de quem se lembra.

 

ANA CLAUDIA QUINTANA ARANTES é médica formada pela USP, especialista em Geriatria e Gerontologia, Cuidados Paliativos e Psicologia do luto, além de escritora.

Artigo publicado em Vida Simples

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