Profissionais de cuidados paliativos como ela fornecem tratamento para pacientes não com o objetivo de que estes se recuperem ou se curem de um problema de saúde. A ideia é garantir, por exemplo, uma “qualidade de morte” para pacientes terminais — com acesso a analgésicos e opiáceos para aliviar a dor, limite a procedimentos invasivos e disponibilização de assistência psicológica (existe inclusive um Índice de Qualidade de Morte mundial, no qual o Brasil não vai bem).
Mas uma doença nova e desconhecida como a causada pelo novo coronavírus traz um cenário “inimaginável” e “traumático” para etapas da vida que já são naturalmente desafiadoras, como a consciência da finitude e o luto, diz Arantes, autora dos livros A morte é um dia que vale a pena viver e Histórias lindas de morrer — lançado no final de março, virtualmente por conta da pandemia.
“O processo de luto é de altíssima complexidade quando você tem um adoecimento traumático como é o coronavírus“, disse a médica à BBC News Brasil em entrevista por telefone, na última segunda-feira (6).
“É traumático porque foge de todos os parâmetros de organização da perda: não tem acesso ao remédio, não tem acesso ao teste, não tem acesso à entubação, não tem acesso à família”, explica Arantes, formada em medicina pela Universidade de São Paulo, com residência em geriatria e gerontologia e especialização em cuidados paliativos pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford.
A médica aponta para o bloqueio ao acesso da família a pacientes internados em UTIs e das restrições a velórios, por riscos de contaminação, como medidas inescapáveis hoje para o controle da pandemia — mas que terão consequências altamente complexas para o processo de despedida de pacientes e de luto para suas pessoas queridas.
“Se você pensa mais ou menos dez enlutados para cada morte, imagina os milhões de pessoas que ficarão inviáveis ou terão dificuldade de reabilitação para sua própria vida (por ter perdido alguém para a covid-19).”
Sobre o percentual de letalidade do coronavírus, Arantes reconhece que ele é menor do que o de outras doenças, mas critica que considerar estatísticas na saúde é se distanciar “da experiência humana”.
“Se morre sua mãe, é 100%. Você pode pensar: 1% das mães morreram, 99% delas estão vivas. Acontece que para você é 100%. A experiência da perda é concreta e absoluta”, define a médica, diretora da Casa Humana, que presta cuidados paliativos em domicílio para pacientes com diagnósticos como câncer e sequelas de AVC.
Confira os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil – A atual pandemia de coronavírus está impactando a relação das pessoas com a saúde e a morte?
Ana Claudia Quintana Arantes – É como se o mundo todo estivesse com o resultado de uma biópsia na mão, para abri-lo, com um possível diagnóstico de uma doença que ameaça a continuidade da vida.
Com o coronavírus, está todo mundo com a possibilidade de se contaminar e, se contaminando, a possibilidade de perder sua vida. Ou alguém da sua família. A questão de risco de vida está batendo na porta de todo mundo ao mesmo tempo. É o mundo inteiro na mesma página agora, pode ser americano, canadense, sul-americano…
Quando você tem a consciência de que está em risco, muitos sentimentos vêm. O medo é o principal deles; mas também a urgência pela vida.
Quando você tem essa percepção, você pensa: por que eu não disse que amava? Por que eu não dei valor a essa vida quando ela era acessível?
Quem nunca pensou nesse assunto antes, está agora vivendo um sofrimento muito intenso.
Além da questão de ficar em isolamento. Quando havia problemas de ansiedade, uma crise dentro de si mesmo, você podia fugir para fora. Agora, tem que ficar dentro de casa.
Ficar em casa para muita gente significa ficar em si mesmo. Só que muita gente habita um mundo interno muito hostil. Além das questões da convivência, das pessoas entrando em contato com uma realidade afetiva que nunca foi de fato enfrentada, como os casais. Agora é a hora da verdade.
BBC News Brasil – Você lida em seu trabalho com pessoas diagnosticadas com doenças difíceis, incuráveis. Mas agora estamos falando de uma doença nova e desconhecida. Isso traz implicações diferentes?
Ana Claudia Quintana Arantes – Sim, porque não haverá a oportunidade de um paciente grave ter tempo com as pessoas. No meu livro A morte é um dia que vale a pena viver, eu fiz um convite às pessas refletirem sobre sua finitude, tornando a vida digna, para que não se precise pensar em uma morte digna, e sim na vida. Para que pessoas, mesmo gravemente enfermas, possam estar presentes no encontro com as outras.
Mas agora, a gente vive um momento em que isso não é possível.
Por isso, a reflexão é muito mais urgente, porque ela diz respeito a uma vida que não está acessível agora.
Nós vamos passar por um processo de reabilitação da vida. Para ninguém a vida será a mesma depois disso. Mesmo quem não perder ninguém, que tiver só perdas econômicas, vai ter uma experiência de olhar para as condições dela, materiais, profissionais, de outro jeito.
No mundo médico, até outro dia era uma crise absurda contra a telemedicina, “que absurdo os profissionais não terem contato com o paciente”. Uma epopeia. E aí, do dia pra noite, a telemedicina é liberada, publicada no Diário Oficial.
É uma quebra — uma quebra não, uma dissolução de paradigmas. Eles de repente desapareceram por conta das necessidades.
BBC News Brasil – Para algumas pessoas, essa pandemia ampliou a possibilidade do teletrabalho, mas pra outras, tornou ainda mais urgente questões sociais como condições precárias de moradia.
Ana Claudia Quintana Arantes – Também é uma realidade que ninguém se importava antes e estamos falando dela agora.
Vou te falar minha opinião, que não sei se vale muita coisa, mas sobre essa demanda dos empresários para que se volte a trabalhar logo.
Se as pessoas voltam a trabalhar, vai ter morte aos milhares. E essas pessoas em subcondição de vida vão morrer em maior número. Essas pessoas (empresários que adotam esse tipo de discurso priorizando a economia) não entendem que não vai ter chão de fábrica, porque as pessoas vão morrer. Estão lutando pela retomada de economia em cima de cadáveres.
Podem falar: mas é pior para as pessoas pobres ficarem em casa. Na verdade, o pior já aconteceu: um total descaso da sociedade em viabilizar uma vida digna para essas pessoas. De ter um lugar habitável, estrutura de saneamento básico, escolas, segurança, saúde.
As pessoas destruíram o sistema de saúde, inviabilizaram a ciência e agora a única forma de sobreviver é retornando a condições de acesso à saúde que estavam sendo destruídas.
De repente, em poucas semanas, tem que reconstruir toda a assistência de saúde e o investimento na ciência porque existe uma necessidade de resposta que as grandes corporações não trazem. São os cientistas que têm que decidir sobre a dosagem de anticorpos, ou a produção de uma vacina. Quem estava dedicado a isso, perdeu sua bolsa de pesquisa.
BBC News Brasil – Principalmente no início dos casos de covid-19, políticos e até médicos minimizaram o perigo desta doença, posição que foi mantida mais recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro, que falou de uma “gripezinha”. Sabemos das inúmeras perdas que essa doença já causou pelo mundo, mas também é um fato que a mortalidade dela é diferente de outras doenças infecciosas, por exemplo. Por que a reação a essa doença é diferente?
Ana Claudia Quintana Arantes – Esse papo furado de estatística só pertence a quem está interessado no resultado da estatística. Sou médica, e no nosso meio, quando falamos de estatísticas em congressos, mestrados, doutorados, estamos nos distanciando da experiência humana do processo.
Estatisticamente, o percentual de morte é baixo. Concordo. A questão é: é um vírus que contamina muito rápido. Então, percentualmente, a letalidade é baixa, mas em números absolutos, é indecente. É inimaginável pensar que pode haver 200 mil mortes em uma semana.
Aí vem o papo: ah, a dengue mata também, o H1N1 mata também. Mata, mas a proporção está diluída ao longo do tempo. E o serviços de saúde bem o mal se acomodam em viabilizar os cuidados.
O que está acontecendo é inviável.
Então, a estatística é linda para publicar artigo, para palanque político.
Mas se morre sua mãe, é 100%. Você pode pensar: 1% das mães morreram, 99% delas estão vivas. Acontece que para você é 100%. A experiência da perda é concreta e absoluta.
(Nota da redação: Hoje, a estimativa da OMS é que 3,4% das pessoas infectadas pelo vírus morrem, mas alguns cientistas estimam que esse índice gire em torno de 1%.)
BBC News Brasil – O luto já é difícil, e o coronavírus está mudando algumas partes do processo.
Ana Claudia Quintana Arantes – Para cada pessoa que morre, a gente estima dez enlutados. O processo de luto é de altíssima complexidade quando você tem um adoecimento traumático como é o coronavírus.
Uma pessoa pode estar bem, até ter doenças crônicas, é infectada e em três semanas morre. E sem poder ter contato com a família.
É traumático porque foge de todos os parâmetros de organização da perda: não tem acesso ao remédio, não tem acesso ao teste, não tem acesso à entubação, não tem acesso à família. É uma desorganização diante do que antes era considerado normal, esperado.
E pra quem fica, o processo de luto pode inviabilizar uma vida — por meses, anos, afetando no trabalho, os relacionamentos…
Então, se você pensa mais ou menos dez enlutados para cada morte, imagina os milhões de pessoas que ficarão inviáveis ou terão dificuldade de reabilitação para sua própria vida (por ter perdido alguém para a covid-19).
Essa é a complexidade da situação.
BBC News Brasil – Por que fazer velórios normalmente, ou ter contato com o corpo, coisas inviabilizadas agora pela covid-19, podem fazer falta no processo de luto?
Ana Claudia Quintana Arantes – A ritualização, como o funeral, faz parte de uma elaboração da nova etapa da pessoa que fica. Cada cultura vai ter seu ritual.
Quando você vê o corpo, enterra, chora, faz a missa de sétimo diz, faz as rezas, isso estrutura o processo. É como se você fosse fazer uma trilha, e tem uma sinalização. A ritualização dá seguranças.
Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora.
BBC News Brasil – Nas situações em que um paciente internado não pode receber visitas, o profissional de saúde que estará ao lado dele terá ainda mais importância, certo?
Ana Claudia Quintana Arantes – Ainda mais importância, porque possivelmente será a única forma de conexão humana ainda disponível.
BBC News Brasil – Para profissionais como esses e que nunca tiveram muito contato com as noções dos cuidados paliativos, o que você daria como orientação?
Ana Claudia Quintana Arantes – Quando elas verem que uma pessoa está morrendo, idealmente antes de entubar o paciente, eu diria: farei o melhor que eu puder para a sua vida.
Se eu falo isso na hora de entubar uma pessoa, cria-se uma conexão muito forte, de confiança.
Se a última coisa que você ouvir na sua vida for isso, vai ter valido à pena. No momento que você estava na sua maior fragilidade, teve alguém que falou: farei o possível pela sua vida. Não é nem para salvar sua vida, mas o possível pela sua vida.
Se o paciente realmente estiver morrendo, já foram tomadas todas as medidas e ele não está respondendo, você fala para ele: você é muito corajoso.
São duas coisas que acredito precisarem fazer parte da experiência humana. Uma delas é saber que você é importante para alguém; e outra é se ver como alguém de valor.
BBC News Brasil – E, como aconteceu em outros países, pode ser que estes profissionais tenham que fazer o que tem sido chamado de escolha de Sofia. Há algum preparo para este tipo de situação?
Ana Claudia Quintana Arantes – Nenhum preparo. Tem muitos jovens que estão sendo nomeados chefes de UTI e não têm condições de saber escolher; vão fazer escolhas com bases intuitivas, ou minimamente qualificadas… E vão sofrer muito por isso.
Mesmo as pessoas mais experientes, ninguém está preparado.
BBC News Brasil – No ramo dos cuidados paliativos, tem iniciativas pelo mundo na atual pandemia que têm te chamado a atenção?
Ana Claudia Quintana Arantes – Existe um movimento mundial em cima dessas prerrogativas de paliativos de emergência. Centros de referência de cuidados paliativos estão promovendo documentação, treinamentos, para que agir no meio desta emergência.
Está tendo também uma campanha de doação de tablets em Portugal para uso em despedidas (entre pacientes e pessoas queridas).
Aqui no Brasil, estamos orientando profissionais de saúde que podem oferecer cuidados paliativos via Casa do Cuidar, Associação Nacional de Cuidados Paliativos, várias Unimeds que têm a rede de cuidados paliativos…
Estamos formalizando treinamentos para manejo de sintomas respiratórios, como tosse e falta de ar. O acesso a medicações como morfina, a midazolam, que é um ansiolítico para controlar a falta de ar…
Mas o Brasil já tinha muito pouco perto da necessidade que já tínhamos. Havia a estimativa de só 0,3% dos pacientes que precisariam de cuidados paliativos tinham acesso. Então estamos muito atrasados em números de equipes, mas a qualidade delas costuma ser muito boa.
(Nota da redação: A médica menciona também que colaborou com a criação de uma guia para despedidas à distância, que está sendo desenvolvida por Tom Almeida, fundador do movimento inFinito. Procurado depois da entrevista, Almeida contou que o Guia de Rituais de Despedidas Virtuais será lançado em 15 de abril na internet, oferecendo orientações e dicas de plataformas que permitem, por exemplo, chamadas de vídeo para conectar pacientes internados e familiares).
BBC News Brasil – Sendo geriatra, como você vê o tratamento, cultural mesmo, aos idosos nessa pandemia?
Ana Claudia Quintana Arantes – Penso que a forma com a gente lida com os idosos no Brasil é bastante… imatura. A gente olha para o idoso como uma pessoa incapaz de compreender e como alguém que precisa obedecer um adulto jovem.
Só que esse idoso é capaz e começa a se revoltar com isso (a tutela).
O idoso, que está sendo muito agredido, tratado de forma pejorativa sobre o isolamento social, quando exige um espaço de escuta, está sendo massacrado.
Eu não tive problemas com os idosos que cuido. Eu conversei com cada um deles, fiz consultas por vídeo (a médica diz que seus pacientes já eram atendidos por conta de outras condições de saúde, mas alguns têm suspeita de coronavírus; estes casos estão sendo monitorados).
Também precisamos entender que alguns idosos também têm seu processo de negação, assim como os adultos.
Mariana Alvim – @marianaalvim
Da BBC News Brasil em São Paulo
Fonte: BBC Brasil