Florianópolis 25 de setembro de 2021
Carta para um amor irmão que partiu em repentino tempo.
Ghesller, há tempos não falava contigo, não te olhava n’alma, não te via em resguardo de amor, acolhimento e compaixão. Há tempos não expressava tua falta, não compartilhava tua partida, não me rePARTIA em vontades de reencontro contigo e comigo mesma.
Te penso e te sinto diariamente. E te pensei mais ainda durante a pandemia pois sei que em função de tua inteligência médica exacerbada e de tua postura cientificamente humanizada, terias lutado para salvar muitas vidas e olharias especialmente e como sempre para os mais velhos, para os vivos já quase mortos que tanto amavas.
Te penso, mas não falo contigo em tempo presente pois há 8 meses meu filho João foi atropelado por um caminhão enquanto aguardava a manobra no bordo da pista daquela rua que tão bem conheces, em Itapirubá, e onde até carros raramente trafegam. Hoje, irmão amado, sou uma mãe enlutada. E de alguma forma, confesso, a partida violenta de meu filho amenizou a “faltura” de te sentir fisicamente aportado nesse plano terreno. Algumas peças ainda não se encaixaram, mas sinto que de alguma maneira a chegada e a partida de João em nossa família está vinculada a tua história e ao teu amor por nós.
João nasceu 1 ano e 3 meses depois de tua partida. E aquele breu desesperado que pairava sobre nossos lares se dissipou, se partiu e pariu novamente um tempo cheio de vida e de luz. João, em diversos aspectos e momentos se parecia contigo: com inteligência acima da média, falou aos 8 meses, amava idosos, era muito sensível ao sofrimento humano e sentia necessidade, desde muito pequenino, de conversas sobre a morte.
Certa vez o levei ao pediatra Cecim, alguém bem conhecido aqui em Florianópolis (imagino que saibas quem é) e ouvi do médico que deveríamos tomar muito cuidado com o que falávamos perto dele pois aquela não era uma criança comum. Lembro-me de que nesse dia ao sair da consulta te senti em resguardo e te olhei esfiapada em luz: essa criança que chegava tão plena de amor e sabedoria nos devolvia parte da vida que havia partido contigo.
Não transferimos em momento algum o amor de um para o outro. Tampouco te substituímos após a chegada dele. Mas a vida estribilhou novamente naquelas covinhas sempre sorridentes, naquela energia vital poderosa, naquele amor incondicional, intenso e inocente que aportou entre nós.
Pois, meu amado, que mais uma vez a morte repentina nos tirou o chão e mais uma vez estamos lutando para que a JUSTIÇA terrena nos honre em vida. Após tua partida lutamos por anos.
A audiência judicial que ouviu nossos pais aconteceu um dia depois do nascimento de João, foi um dia duro e doloroso, mas ao final do processo nossa família protegida e a pessoa que te estimulou a parar o tratamento para a depressão em detrimento de uma intenção desumana e do fanatismo religioso, foi reeducada. Aprendi ali que apesar da dor, precisamos lutar. Aprendi, meu irmão, que vale a fé, que a JUSTIÇA pode ser instrumento do bem e da verdade, que o amor vence a ganância e o ódio. Aprendi, especialmente, a vibrar na justiça que não é vingança. É justiça, é digna, é direito e dever.
Após a partida de meu filhinho sonhei contigo algumas vezes. Estavas bem, retornado de uma viagem de estudos, elegante, em um lugar moderno e tecnológico. No sonho procurava por nossa mãe e te encontrei. Luiza, que tanto te ama e sente tua falta, estava lá, mas falaste apenas comigo.
O sonho me impactou porque no primeiro encontro que tive com João, cerca de 10 dias após sua morte física, ele se sentou em meu colo (estávamos no teatro do CEMJ, aparados por outras crianças e por mães da turma de Luiza), encostou a cabecinha em meu rosto e me falou que queria que eu soubesse que ele continuaria estudando. O abracei e falei que ele não se preocupasse com os estudos naquele momento. Em seguida senti seus cabelos de anjo tocando meu rosto e acordei, em prantos de emoção e amor.
Tenho dois anjos estudantes então. Dois seres de luz e inteligência, duas saudades que doem de maneira diferentes e que me mostram que a vida é tão poesia quanto a morte, que a justiça deve ser um portal reverberante de vida e que lutar por ela é tão digno quanto respirar, quanto ter fé no bem e na natureza humana que em essência é boa e gentil.
Tenho recebido de volta o amor que sei que semeei nesses meus anos de vida. Nunca me sinto sozinha e sigo sendo gentilmente amparada. Ainda assim, meu irmão, hoje eu sou a mãe da dor e da saudade. Sinto falta de meu filho na mesma proporção em que senti a tua, após a estupidez de tua morte provocada.
Saibas que não te julgo. Nunca te julguei embora ainda fique indignada contigo quando mensuro a falta que fazes para nossos pais. Eles, apesar da dignidade com a qual agem e lutam para aceitar os propósitos desta vida, ainda sofrem profundamente a tua falta. E agora sofrem também a profunda falta de João, que foi atropelado diante de nosso pai, por um motorista irresponsável que tirou o caminhão do local e ao retornar levantou o lençol para fotografar meu anjo morto.
O pai, meu querido, segue sendo nosso herói encarnado. É um pequeno gigante que segue de pé apesar das rasteiras grosseiras que a lhe deu. Eu sei que ele é teu herói. Mensuras, meu querido, o que eles, pai e mãe sentiram e sentem diante de tamanha dor? Eles te encontraram e estavam contigo nos teus últimos momentos de vida terrena. Eles estavam com João no momento do atropelamento, o pai viu tudo e a mãe chegou em seguida. Eles, em dignidade e força tamanha, deram conta de amparar a passagem de dois amores. Eu não sei se daria e os venero em gratidão.
Hoje todos nós estamos de resguardo na casa de amigos, na Praia Brava, pai e mãe estão conosco. A natureza tem sido cura, as terapias também são. O amor mais ainda. Sigo na luz, meu irmão. E com o apoio de duas pessoas abençoadas, minha psiquiatra Lisiane e minha psicóloga Saidy, estou escrevendo sobre meus processos de “lutos e de lutas” nas redes sociais. No início me senti insegura, com receio da exposição, dos julgamentos, mas tenho também ali recebido amor e creio, tocado vidas.
Pessoas amigas e também desconhecidas, meu amado, estão me escrevendo em particular para contar que meus depoimentos passaram a tocar vidas e que a partir do acolher de minhas palavras elas estão buscando tratamento para depressão, estão amando mais, estão sendo presença e presente para seus filhos, estão aprendendo que lutar pela justiça “dos homens” também pode seu um ato de amor.
Eu sigo, meu querido, te amando incondicionalmente. Sigo te enviando luz, sigo te honrando em propósitos de vida, de amor ao próximo, de autoamor e de dignidade. Sinto tua falta, meu anjo número 1. Sigo escrevendo a história de minha vida e nela há agora dois capítulos de amor e luto, de luto e luta, de recomeço. E eu recomeço porque amo a vida, amo as libélulas, os passarinhos, o som do mar, as criancinhas, a poesia, as palavras, o azul do céu, a Luiza, nossos pais, nossos bichinhos (Linda, Pérola, Bento e Estrela).
Mas recomeço também porque te amo e amo meu anjo João. Sigo em dignidade a vida e a luta para que ao findar dessa minha viagem terrena a passagem seja leve e feliz. E para que eu chegue ao novo destino deslumbrante em luz, sendo acolhida em compaixão, ciente de que vida e morte tem um propósito de amor.
Que eu tenha o merecimento de ao ancorar na viagem também os encontrar em luz, meu irmão-filho, meu filho-irmão. Que tu estejas bem, com teu coração de amoroso equilibrado, estacionado no lugar certo e ciente de que o auto perdão é o caminho para a lucidez das verdades da vida, que muda de plano, mas segue em destinado à evolução da mente e da alma.
Com saudade e amor, tua irmã karenn Ramisia.