Vida Simples: Amar enquanto é tempo

Falar da morte ainda assusta. Mas percebo que o que realmente amedronta não é o fim do outro – é o abismo que se abre dentro de nós quando ele se vai. O que nos paralisa não é a despedida em si, mas a perda daquela testemunha do nosso amor.

Quando alguém que amamos morre, é como se perdêssemos não só a pessoa, mas também a parte de nós que só existia em relação a ela. O jeito que ela nos olhava, nos chamava, o lugar que ocupava em nossa rotina, em nossos silêncios, em nossos sonhos – tudo isso desaparece. E, junto com essa lacuna, vem uma pergunta que rasga por dentro: quem sou eu agora, sem essa pessoa para reconhecer o amor que eu sentia?

É por isso que a morte do outro nos fere como se fosse a nossa. Porque ela desmonta aquilo que acreditávamos ser sólido: o nosso papel na vida do outro, o afeto que nos definia, os planos que nos ancoravam. E então começamos um luto que não é apenas pela ausência do outro, mas pela ausência de nós mesmos tal como éramos com aquela pessoa. É um luto que revela a dor de um amor sem endereço.

O amor não morre, ele se transforma

Também percebo que o que mais machuca não é o fim em si. É o que não foi vivido. É o beijo que não demos, o abraço que não oferecemos, a palavra que engolimos. É o silêncio onde deveria ter havido presença. Mas, quando uma relação é vivida com inteireza, quando há verdade, afeto, presença, escuta e entrega, o fim não vem carregado de arrependimento. Ele vem com tristeza, sim. Mas é uma tristeza limpa, sem resíduos. Livre de dívidas emocionais.

Não podemos perder a oportunidade de amar enquanto é tempo. Porque o que fere não é a ausência do futuro, mas o vazio de um presente não vivido.

O luto, quando vivido com presença e coragem, não é apenas dor, ele é também uma jornada de reencontro com o amor que permanece. Porque o amor não morre. O corpo se vai, mas o vínculo não. Ele muda de forma, de linguagem, de tempo. Passa a morar na memória, no gesto repetido, na música que toca de repente, no jeito de cortar uma fruta, de dobrar uma roupa, de olhar o mundo com os olhos que herdamos.

A gente aprende a amar no invisível. Aprende a reconhecer a presença na ausência, a escutar o silêncio como resposta. A saudade vira altar; a lembrança, oração. O que nos cura não é o tempo – é o amor que seguimos cultivando, mesmo depois do fim. É ele que nos permite lembrar com gratidão em vez de apenas com dor. É ele que faz da morte uma travessia, não uma interrupção.

 

ANA CLAUDIA QUINTANA ARANTES é médica formada pela USP, especialista em Geriatria e Gerontologia, Cuidados Paliativos e Psicologia do luto, além de escritora.

Fonte: Vida Simples

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