Vida Simples: ‘No Brasil, não morremos de câncer, morremos de dor’

(Foto: National Cancer Institute/Unsplash) Ainda estamos muito distantes de oferecer um cuidado digno pros brasileiros que enfrentam uma doença ameaçadora de vida

Se não quiser falar sobre a morte, tudo bem. Mas um dia ela chegará para todos. É que pensar e refletir sobre o caminho até o fim esbarra em temas delicados – o luto, a doença, os últimos dias –, mas que não deixam de ser importantes para a construção de uma vida mais digna até os momentos derradeiros.

Esse tabu gigantesco é um dos grandes inimigos dos cuidados paliativos, área da assistência à saúde que provê alívio do sofrimento de pessoas diante de uma doença que ameaça a continuidade da vida. No entanto, muitos acreditam que escolher a medicina paliativa é sinônimo de escolher a morte. Mas, na verdade, é um protocolo de tratamento que preza por uma vida com qualidade até o final.

Formada em medicina pela USP (Universidade de São Paulo) e em geriatria pelo Hospital das Clínicas, a médica Ana Claudia Quintana Arantes é uma voz ativa na luta dos cuidados paliativos no Brasil. Ela fundou a Casa do Cuidar em 2007, instituição que promove a prática e ensino de cuidados paliativos, e A Casa Humana em 2018, clínica que trabalha com pacientes em reabilitação domiciliar em São Paulo. Em 2016, publicou o best-seller “A morte é um dia que vale a pena viver” (Sextante).

De acordo a escritora, o lugar mais seguro para morrer é onde tem tudo necessário para o alívio imediato do sofrimento. Apesar da estrutura dos hospitais, nem sempre eles são o lugar o ideal para pacientes que precisam de um medicamento imediatamente ou de uma equipe especializada. Esse cenário é uma consequência estrutural da baixa formação de profissionais paliativistas na educação brasileira e demora no reconhecimento da disciplina no país.

“Eu vivi situações muito impossíveis de lidar, porque havia famílias desequilibradas com a situação, pacientes que desejavam viver aquilo de uma forma específica e equipes que não conseguiam atender todas essas necessidades. Para dar continuidade ao trabalho, criei a Casa Humana. Uma necessidade minha como médica paliativista”, afirma Ana Claudia.

O movimento dos cuidados paliativos tem mais de trinta anos de história no Brasil e, mesmo assim, ainda são necessárias muitas ações para promover experiências de dignidade e qualidade de vida aos pacientes que necessitam desses cuidados.

“Cerca de 30% das pessoas que estão na UTI (Unidade de Tratamento Intensivo) nesse momento são pessoas que se beneficiaram desse tratamento. Elas estão totalmente afastadas ou impedidas de alcançar o protocolo de cuidado e de conforto”, aponta a médica.

“No Brasil, não morremos de câncer, morremos de dor, porque muitos profissionais não sabem tratar a dor adequadamente”

O último Atlas dos Cuidados Paliativos no Brasil, divulgado em 2022 pela ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos), mostrou que existiam 234 serviços assistenciais de cuidados paliativos distribuídos por todo o país: com 41,8% no Sudeste, 25,7% no Nordeste, 17,1% no Sul, 12% no Centro-Oeste e 3,4% no Norte.

Entre 2020 e 2022, a ANCP registrou 90 novos serviços na área e, mesmo assim, esse crescimento está longe de ser o ideal, tanto pela concentração de oferecimento no Sudeste, como pela baixa disponibilidade desses serviços em sistemas de saúde públicos e pelo grande número de pessoas que precisam ser atendidas.

“Ainda estamos muito distantes de oferecer um cuidado digno pros brasileiros que enfrentam uma doença ameaçadora de vida. O Brasil tem proporções continentais e precisa de pelo menos 5 mil dessas equipes, com médicos, enfermeiros, psicólogos, e assistência social minimamente especializados.”

Desmistificando os cuidados paliativos

A especialista afirma que há uma grande diferença entre tratamento e cuidado. O primeiro é um conjunto de procedimentos; o segundo é o alívio do sofrimento e da dor. Por isso, o cuidado paliativo é o comprometimento com a vida plena, e não um contrato com a morte.

“Quem escolhe o cuidado paliativo não escolheu morrer. A pessoa escolheu viver. Ser cuidada e não tratada.”

O ChatGPT disse:A imagem em preto e branco mostra a médica Ana Claudia Quintana Arantes sorrindo, encostada em uma parede. Ela usa brincos de argola e um colar marcante, transmitindo simpatia e leveza.

(Foto: Divulgação) Médica e autora Ana Claudia Quintana Arantes, fundadora d’A Casa Humana

E vai além. Toda a delicadeza presente na medicina paliativa também modifica o processo de luto da família. É comum ouvir em funerais a frase “foi para o melhor, ele estava sofrendo muito”, mas não precisa ser sempre assim. O luto fica melhor amparado junto a uma equipe que prepara os familiares para o falecimento e oferece oportunidades de despedida.

Quando começou seu trabalho com pacientes em terminalidade, Ana Claudia Quintana Arantes percebeu que a maioria das pessoas preferiam ser tratadas em casa, não só pela dificuldade de se deslocar a um hospital mas também por estar em um ambiente mais confortável e que dialoga melhor com a história de cada um.

Comum em alguns tipos de clínica de cuidados paliativos, o modelo Hospice de internamento tem espaço físico próprio para acompanhamento, tratamento e supervisão clínica. Ao criar A Casa Humana, o objetivo da médica foi levar toda a estrutura de um Hospice para dentro da casa de cada paciente, uma reabilitação domiciliar com profissionais disponíveis 24 horas por dia, respeito a rotina de cada pessoa e diferentes especialistas que prestam visitas a domicílio.

Estar em casa em um momento tão delicado representa conforto aos familiares e a cada paciente que pode continuar a conviver com os animais de estimação, dormir no próprio quarto, ter autonomia maior na rotina e estabelecer um ambiente adequado a todas as necessidades psicológicas e físicas.

História e Diretivas Antecipadas de Vontade

A história do cuidado paliativo no Brasil começou na década de 1990, com movimentos embrionários que visavam difundir a filosofia paliativista – um modo mais humanizado de cuidar dos pacientes, mas não necessariamente uma disciplina médica.

Entre a fundação de outros serviços relacionados e inclusão da prática em alguns serviços de oncologia, o cenário começou a se movimentar por volta de 2004 e 2005, anos em que a SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) instituiu a Comissão Permanente de Cuidados Paliativos e houve a fundação da ANCP, respectivamente.

Esses dois marcos possibilitaram a criação de outras iniciativas pelo país e formação de profissionais, mas com foco principal na região Sudeste.

Em 2006, o CFM (Conselho Federal de Medicina) publicou a primeira resolução que reconhecia a prática de Cuidados Paliativos e, três anos depois, incluiu no Código de Ética Médica a prática como princípio fundamental – um marco na história da medicina brasileira. Segundo Ana Claudia, o Brasil é o único país que tem “cuidados paliativos” escritos na redação do código de ética médica.

Finalmente, em 2012, o CFM lançou a resolução que aprovou as Diretivas Antecipadas de Vontade, um meio legal pelo qual a pessoa atesta os procedimentos a serem seguidos em tratamentos de saúde, caso ocorra perda de lucidez.

A médica destaca que esse documento vale para situações de terminalidade em doenças graves, sem possibilidade de cura ou controle.

“Na diretiva você escolhe aquilo que acredita que vale ou não vale a pena ser submetido diante da sua terminalidade. Mais do que um documento que diz não para procedimentos, é um documento que diz sim para a morte natural.”

A morte natural, nesses casos, não é uma morte desamparada. Ao contrário, é um processo de cuidado contínuo que preza pelo bem-estar do paciente até o último momento, sem sofrimento ou dor.

Dois pontos devem ser destacados na elaboração das diretivas: o envolvimento de um paliativista e o papel da família. A consulta de um médico nesse momento é muito importante para explicar ao paciente o que dá e o que não dá para ser descrito no documento.

Por exemplo: a pessoa quer passar os seus últimos dias em uma casa na montanha e não quer utilizar nenhum tipo de sonda de alimentação. Mas o lugar é de difícil acesso e a viagem é longa. O papel do médico, nesse caso, é orientar que talvez passar a sonda seja a melhor opção, já que não será possível que um profissional da saúde chegue a esse lugar.

“A elaboração das diretivas precisa ser feita por uma pessoa, de preferência um paliativista, que saiba explicar o que significa cada escolha, de forma a ajudar a tomar decisões que permitam que o paciente tenha uma experiência de dignidade”, explica Ana Cláudia sobre o serviço, que também é oferecido na Casa Humana.

Mesmo com a legitimidade do documento, é importante envolver familiares nesse processo: pessoas que vão defender a vontade do paciente quando ele não conseguir fazê-la sozinho. Esses casos acontecem, principalmente, quando o indivíduo está inconsciente – se estiver consciente, pode responder de forma diversa do que está expresso no documento.

Caso algum familiar ou a equipe médica não respeite as diretivas, é possível entrar com processos de danos físicos ou cárcere privado, dependendo do que tenha sido descrito no documento.

A luta continua

Foi um longo caminho até o reconhecimento dos cuidados paliativos. No entanto, a luta ainda não acabou. Em 2022, foi homologada pelo CNE (Conselho Nacional de Educação), uma resolução que torna obrigatória o oferecimento de disciplinas de cuidado paliativo na graduação em medicina. Esse avanço é importante para o aumento da formação de profissionais capacitados para atuar na medicina paliativa e implementar mais equipes de cuidado dentro dos âmbitos hospitalares.

Aprovado na Câmara dos Deputados em 2024, o Projeto de lei 2460/2022 institui o Programa Nacional de Cuidados Paliativos no SUS, que reserva o direito de acesso a medicina paliativa nos serviços de saúde em âmbito nacional, em todos os níveis de atenção à saúde. O projeto, apresentado pela Deputada Luísa Canziani e redigido por Ana Claudia Quintana Arantes, aguarda tramitação no Senado.

Fruto dessa mobilização popular e de especialistas, o Ministério da Saúde lançou em 2024 a Política Nacional de Cuidados Paliativos, ação inédita no Brasil que guiará os cuidados paliativos no serviço público de saúde a partir do encaminhamento realizado pela Equipe de Saúde da Família. A expectativa é que mais de mil equipes multidisciplinares e especializadas sejam implantadas em todo o território nacional.

Atuando nas frentes de formação de profissionais e expansão do alcance do cuidado paliativo, a expectativa de Ana Claudia Quintana Arantes é que todos possam ter uma morte humanizada:

“A minha vida é dedicada a esse propósito: tirar o véu do preconceito, porque a forma como as pessoas morrem sendo cuidadas é uma forma muito mais digna.”

 

Fonte: Vida Simples

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