Falar da morte continua a ser, para muitos, um tabu — um assunto evitado, adiado e revestido de medos. Mas para Ana Claúdia Quintana Arantes, médica de cuidados paliativos, a morte não é o fim: é uma oportunidade.
Autora do livro “A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver”, Ana Claudia Arantes diz que a morte é “uma professora generosa” que tem muito a ensinar a todos. Ensina-nos a viver com mais presença, a amar com mais verdade e a escolher com mais consciência.
Em entrevista à CNN Portugal, falou-se do papel do luto, das desigualdades entre ricos e pobres até na hora da morte, da importância da escuta, da delicadeza e da beleza que pode ter o fim da vida. Mas falou-se sobretudo da urgência de aprender a morrer para sabermos, de facto, viver.
“A morte é um excelente motivo para procurar um novo olhar para a vida”. Isto aplica-se a quem? A quem está a viver uma doença terminal, por exemplo, ou a quem cá fica?
Aplica-se a todos nós. A morte é uma professora generosa. Para quem está a viver uma doença terminal, ela oferece a oportunidade de se despedir com mais presença, de encerrar ciclos com dignidade. Para quem fica, é uma oportunidade de refletir sobre o que realmente importa — de perceber que a vida é urgente, e que o amor precisa ser dito enquanto ainda pode ser escutado.
É médica de cuidados paliativos. Porquê? Foi uma escolha, um acaso…
Foi uma escolha que começou como um incómodo. Não suportava mais ver pacientes morrerem sozinhos, com dor, com medo e sem sentido. Os cuidados paliativos escolheram-me, quando eu disse sim ao sofrimento humano, não como algo a ser evitado, mas como algo a ser cuidado com respeito e presença. Era o único lugar da medicina onde a escuta era mais importante do que qual quer procedimento invasivo.
O que é que ser médica de cuidados paliativos lhe ensinou?
Ensinou-me que ninguém precisa morrer com dor, que o sofrimento pode ser aliviado — mas, principalmente, ensinou-me a viver. Viver com verdade, com coragem e com uma consciência de que o tempo é finito. Aprendi que o silêncio também é cuidado, que o toque tem linguagem e que a presença é remédio.
Por que é tão difícil encarar um diagnóstico de uma doença potencialmente fatal? A forma como aceitamos ou não um diagnóstico destes pode influenciar o tratamento ou a reação ao tratamento?
É difícil porque nos obriga a encarar a fragilidade que passamos a vida a tentar evitar. Receber esse diagnóstico é ser confrontado com a própria finitude — e a maioria de nós não foi educada para isso.
A forma como lidamos com o diagnóstico transforma tudo: quem aceita com serenidade consegue fazer escolhas mais conscientes, participa do tratamento de forma ativa, reconcilia-se com pessoas e com histórias, vive o tempo que resta com mais “inteireza”.
Li uma entrevista sua em que descreve as mortes dos seus pais como momentos bonitos. Não consigo ver beleza nessa perda das nossas raízes, do nosso colo…
A beleza de que falo não é ausência de dor. É beleza como completude. Pude estar com eles, cuidar deles, ouvi-los, beijá-los, segurar as suas mãos até ao último instante. A beleza está no amor vivido até o fim, mesmo com a dor da perda. Não é fácil… Mas quando conseguimos olhar para a morte como um ato de amor — e não de interrupção — ela deixa marcas menos cortantes e mais profundas.
Ter medo da morte é normal? Devíamos combatê-lo?
É absolutamente normal. O medo da morte é o medo de desaparecer, de não deixar legado, de ser esquecido. Mas o problema não é ter medo, é deixar que esse medo nos paralise. O melhor antídoto contra o medo da morte é viver com mais sentido. A vida bem vivida reduz o pavor da morte.
A eutanásia é um tema muito fraturante na sociedade portuguesa. O que pensa do assunto?
Como médica de cuidados paliativos, acredito que a eutanásia só deve ser considerada quando todas as possibilidades de cuidado foram alcançadas por todas as pessoas. E infelizmente, isso ainda está longe de acontecer em muitos países, incluindo os nossos.
Mas como mulher e cidadã, acredito na autonomia e no direito de acesso a diagnóstico, tratamento correto e esclarecimentos que levam a possibilidade real de escolha. O sofrimento que não pode ser aliviado merece escuta e o desejo de morrer pode ser um pedido de ajuda — que precisa ser acolhido, não negado.
Disse no início da entrevista que “a morte é uma professora generosa”. O que é que a morte nos pode ensinar?
A morte ensina a urgência de viver com sentido. Ensina que não temos controle, que precisamos perdoar mais rápido, amar mais livremente e escolher com mais consciência. Ela ensina que o tempo é sagrado e que a presença é o maior presente que podemos oferecer a alguém.
Tem um capítulo no livro dedicado ao luto. O luto tem um tempo e um modo certo de ser vivido ou, de facto, cada pessoa tem os seus?
Cada pessoa tem o seu tempo, o seu jeito, a sua história. O luto é uma forma de amor que se expressa depois da perda. Não há manual. O que existe é a necessidade de respeito — a quem sente muito, a quem parece não sentir, a quem chora todos os dias, a quem silencia. O luto não é doença. É uma travessia.
Diz que “Tenha fé” é a pior coisa que se pode dizer a alguém que está a viver uma doença terminal. Porquê?
Porque essa frase tenta consolar silenciando a dor do outro. Ela impõe uma solução mágica, quando, na verdade, a pessoa precisa ser escutada, não catequizada. A fé verdadeira nasce do encontro com a dor e não da negação dela. Mais importante do que dizer “tenha fé” é dizer: “estou aqui consigo, mesmo sem saber o que dizer”.
Como devemos acolher pessoas que estão diante da iminência da morte?
Com verdade, com presença, com silêncio respeitoso e com amor. Sem tentar consertar, sem minimizar a dor. O melhor cuidado é estar — inteiro. Às vezes, segurar a mão e dizer: “você não está só”, vale mais do que qualquer conselho ou consolo.
E como devemos falar da morte a crianças? E, já agora, como devemos encarar a morte de crianças?
Com verdade. As crianças entendem muito mais do que imaginamos. Falar da morte com palavras simples, com escuta atenta, com afeto.
A morte de uma criança é uma ferida que nunca cicatriza — mas ensina-nos sobre a preciosidade do tempo, sobre a leveza do agora. As crianças morrem como viveram: com pureza. E deixam-nos a missão de continuar vivos com mais amor.
Dirigiu os cuidados paliativos no Hospital Israelita Albert Einstein, um hospital para pacientes com posses financeiras. Mas também exerceu as mesmas funções no Hospício do Hospital das Clínicas da USP. Há alguma diferença na forma como os ricos e os pobres encaram a morte? Morremos todos da mesma maneira? Na hora da morte, como se diz, somos todos iguais?
Na morte, somos todos humanos. Mas no processo de morrer, infelizmente, ainda há desigualdades profundas. Os ricos têm mais acesso a conforto, a escolhas, a dignidade. Os pobres muitas vezes morrem sozinhos, com dor, sem voz. Há preconceitos em todos os olhares e atos, há ausência de responsabilidade e compromisso…É por isso que os cuidados paliativos precisam ser uma política pública — para que todos tenham o direito de viver e morrer com o respeito e cuidado necessários.
Fonte: CNN Portugalhttps://cnnportugal.iol.pt/morte/vida/na-morte-somos-todos-humanos-mas-no-processo-de-morrer-ainda-ha-desigualdades-profundas/20250517/682350e0d34ef72ee445e935
Uma resposta
Excelente entrevista da Dra. Ana Cláudia. Tive oportunidade de estar com minha mãe nos últimos dias de sua vida. Ela foi muito bem acompanhada e cuidada na clínica de cuidados paliativos do HC. São Paulo . Ela teve uma morte digna, sem dor e com todo carinho e atenção dos familiares e toda a equipe dde profissionais.
Gratidão 🙏
Dra. Ana Cláudia por sua luta incessante de que a morte é um dia bonito de se viver.